Dando continuidade à campanha voltada à prevenção do suicídio (“Setembro Amarelo”), a Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 15.ª Região – AMATRA XV entrevistou Zeno Simm(*), Advogado, Magistrado Aposentado e com vasta experiência no meio acadêmico, autor do livro “Suicídio como Acidente do Trabalho e Direitos Fundamentais – uma Perspectiva Comparada” (Editora Alteridade), lançado em julho deste ano.
Confira a entrevista concedida à AMATRA XV:
AMATRA XV – O que o levou a escrever sobre o “Suicídio como Acidente do Trabalho”, um tema tão complexo? Por quanto tempo se dedicou a essa pesquisa?
Zeno Simm – O tema já me instigara há 30 anos, quando escrevi algumas linhas sobre a possível caracterização do suicídio como acidente do trabalho em determinadas circunstâncias, na forma de um artigo publicado em setembro de 1.990. Depois apresentei o assunto de forma um pouco mais ampla em um congresso no México, em 2.011, então já impressionado com as notícias que chegavam da Europa e dos Estados Unidos sobre suicídios dados como de causa laboral, fato que já se verificava também no Brasil. A Organização Mundial da Saúde preocupou-se bastante com o tema, chegando a dizer que a cada 40 segundos alguém no mundo se suicida e desenvolveu estudos e recomendações a respeito. Porém, o que me levou a aprofundar o estudo e a pesquisa, até mesmo para minha tese doutoral em 2.016 (agora publicada em livro), foi a quantidade quase endêmica de suicídios cometidos por mais de 30 empregados da empresa France Télécom (atual Orange) durante seu processo de reestruturação. Também fui influenciado pela doutrina e jurisprudência espanholas, onde o assunto já vinha sendo objeto de estudos e de decisões judiciais. A pesquisa não foi contínua, mas posso estimar que me tomou uns 12 meses.
AMATRA XV – Quais os principais pontos abordados nessa obra?
ZS – Sinteticamente, faço uma avaliação histórica do fenômeno, analiso aspectos da vida, da morte e do suicídio, e busco expor a caracterização e classificação do suicídio e suas causas, dentre as quais destaco a depressão. Trato dos direitos fundamentais na relação de emprego, como o direito ao ambiente física e psicologicamente saudável, também abordo a relação entre trabalho e saúde mental, psicopatologia do trabalho e riscos psicossociais, a degradação do ambiente de trabalho, depressão de origem laboral e frustração do projeto de vida. Faço uma análise das doenças ocupacionais e do acidente do trabalho em geral, para em seguida enquadrar o suicídio nessa categoria, buscando mostrar em que situações a morte autoprovocada pode ter origem laboral, se não como causa direta, ao menos como “concausa”, com a caracterização do nexo causal trabalho-suicídio. Por fim, trato das consequências trabalhistas, previdenciárias e de responsabilidade civil oriundas dessa caracterização, tenha o suicídio sido consumado ou não.
AMATRA XV – No decorrer da sua pesquisa foi possível identificar as causas mais recorrentes do suicídio em ambiente de trabalho?
ZS – Sim, foi possível, mas é importante lembrar que não se trata apenas daquele ocorrido “em ambiente de trabalho” e, sim, todo aquele que é perpetrado em qualquer local porém por razões ligadas ao trabalho. Indago: o que leva alguém a tirar a própria vida ou a querer morrer? Por que deixar de viver? A fuga pelo autocídio é um ato consciente ou é fruto de um desespero cego? Para tais indagações tão complexas as respostas são igualmente complexas. Muitas vezes o suicida não quer propriamente morrer, quer apenas parar de sofrer, livrar-se de um sofrimento e de uma dor psicológica que lhe parece insuportável, inevitável e interminável. Viver torna-se algo penoso e há um sentimento de desesperança, de inutilidade, de fracasso, a morte enfim é uma tentativa de matar a dor. Cerca de 97% dos suicídios estão relacionados a transtornos mentais como a esquizofrenia, bipolaridade e outros, mas a principal causa ainda é a depressão, considerada pela OMS como “a doença do século”. Há vários transtornos mentais que podem ter sua origem no trabalho e assim levar à ideação suicida.
AMATRA XV – Em sua opinião, quais hipóteses ou circunstâncias em que o suicídio pode ser qualificado como acidente de trabalho?
ZS – O trabalho não é indiferente à saúde: ou a promove física e mentalmente, ou a destrói com suas patogenias. Há bastante tempo Christophe Dejours escreveu “A Loucura do Trabalho” e antes dele Charles Chaplin, em seu clássico “Tempos Modernos”, já demonstrara como as condições de trabalho podem levar ao adoecimento mental. Porém, estabelecer o nexo de causalidade ou concausalidade entre o trabalho e o suicídio, de modo a caracterizá-lo como infortúnio laboral, não é tarefa fácil. A legislação previdenciária espanhola tem um dispositivo segundo o qual presume-se acidente do trabalho aquele evento ocorrido no local e no tempo de trabalho, o que tem levado a doutrina e a jurisprudência daquele país a assim qualificarem o suicídio perpetrado na hora e local de trabalho. Diante dessa presunção juris tantum, cabe ao empregador ou ao órgão previdenciário o ônus de provar o contrário. Além dessa hipótese, há diversos fatores ligados ao trabalho que podem levar à dor psicológica precursora do suicídio. Aqui podem ser citados os variados riscos psicossociais, alguns decorrentes da crise econômica, da globalização, do desemprego ou sua ameaça, que gera insegurança e intranquilidade. Destacam-se também a degradação do ambiente laboral com as novas formas de gestão e de organização do trabalho, que levaram do solidarismo ao individualismo entre os colegas, que passam de companheiros a rivais ou competidores pela manutenção do emprego. Incluem-se também as pressões por metas e resultados, com a sobrecarga de trabalho e o acúmulo de tarefas, o estresse ocupacional, o burn out, o desgaste mental, a quebra do contrato psicológico e a frustração do projeto de vida, tudo isso podendo levar a doenças não apenas físicas, mas também a transtornos mentais que, por sua vez, podem induzir ao suicídio. Para demonstrar o nexo causal, os estudiosos e os julgadores referem-se a elementos probantes como a coleta de depoimentos, anotações em diários, bilhetes ou cartas de despedida e quaisquer outros meios de prova, aqui destacando-se a autópsia psicológica.
AMATRA XV – O estudo sobre o suicídio e sua prevenção ainda não receberam a devida atenção em nossa sociedade. O senhor enfrentou dificuldades para aprofundar a sua pesquisa?
ZS – De fato, o suicídio ainda é um assunto tratado com reservas, com ares de tabu, estigmatizado e mencionado em sussurros, outras vezes é camuflado pela família e até por médicos. Há razões históricas, de índole cultural e religiosa, que influenciaram esse comportamento, muito embora Marx e Durkheim já tivessem tratado disso como um problema sociológico. Nos meios de comunicação há um consenso, uma regra não escrita, no sentido de burilarem-se as notícias a respeito de suicídios, com a ideia de não estimular a sua prática. Não houve, porém, dificuldades intransponíveis para pesquisar o tema, em especial na literatura estrangeira, além do que várias dessas obras foram traduzidas para o Português e mesmo aqui no Brasil já há diversos autores nacionais tratando muito bem do tema. Penso que a tendência é tornar-se cada vez mais abundante esta literatura, até porque está acontecendo um grande esforço para se falar sobre o assunto. Várias campanhas, como o “Setembro Amarelo” e as ações do Centro de Valorização da Vida – CVV, estão abordando o assunto como forma de prevenção do suicídio, com lemas como “Falar é a melhor solução”. Além da atuação da OMS, aqui no Brasil há iniciativas do Conselho Federal de Medicina, da Associação Brasileira de Psiquiatria e também do Ministério da Saúde com material de orientação e normas destinadas à prevenção, merecendo destaque a Lei nº 13.819/2.019, que instituiu a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio. Afinal, diante das estatísticas não se trata mais de algo que deva ser acobertado, já é um problema de saúde pública.
AMATRA XV- Qual o setor no Brasil em que há mais casos de suicídio no trabalho? Há uma justificativa para isso?
ZS – No âmbito das relações de emprego, que é o foco do meu trabalho, o maior número de suicídios tem ocorrido entre bancários (em sentido amplo), a ponto de dedicar um tópico do livro especificamente para essa categoria profissional. Pelo menos, é neste setor que mais se desenvolveram os estudos a respeito da relação trabalho-suicídio, geralmente atribuída aos processos de reestruturação, ao uso das novas tecnologias e ao desemprego (real ou potencial), às metas às vezes difíceis de cumprir, gerando rivalidade, individualismo e isolamento, com o empregado cada vez mais procurando vender ou impingir produtos aos clientes para não apenas melhorar seus ganhos com as respectivas comissões, mas, sobretudo, cumprir as metas e assim destacar-se dentre os demais para mostrar-se útil e preservar o emprego. Pelas mesmas razões, outros acumulam atribuições acima de suas possibilidades físicas e mentais com o objetivo de serem vistos como indispensáveis e proveitosos para o empregador. Mas é também grande o número de suicídios nos meios policiais e no meio rural, aqui com o uso de agrotóxicos. Em Portugal, por exemplo, há uma campanha visando a restringir a venda de armas e de defensivos agrícolas como forma de prevenção ao suicídio.
AMATRA XV- Qual a importância de uma obra como a sua para a comunidade jurídica e mesmo para a sociedade?
ZS – Penso que o livro possa interessar à comunidade jurídica pelas informações que traz acerca do tratamento legal dado à matéria, não só no Brasil como em outros países, notadamente a Espanha, na forma de um estudo comparado. O eixo central busca estabelecer em que hipóteses e circunstâncias o suicídio (consumado ou não) de um empregado poderá ser qualificado como acidente do trabalho para fins trabalhistas e previdenciários e quais as suas consequências jurídicas nessas áreas e na reparação civil.
Para a sociedade, ficam as noções do que é o suicídio e suas motivações, se é um ato voluntário ou fruto de um transtorno mental multifatorial, tangenciando também noções sobre suicídio assistido, eutanásia e ortotanásia, com uma análise particular da depressão e alguns questionamentos sobre o direito à vida e à morte. Sobretudo, parece relevante trazer o assunto à baila, removendo o véu que estigmatiza o suicídio e encarando-o como algo real, sério e que merece atenção para ser prevenido. Talvez desperte nas entidades sindicais a importância que podem ter na adoção de medidas preventivas e não meramente reparatórias.
AMATRA XV – As empresas podem adotar medidas preventivas ou precautivas, que possam evitar o suicídio no trabalho?
ZS – Sim, é possível ao empregador tomar atitudes preventivas para evitar que o trabalho seja fator de indução ao ato extremo. Primeiro, ver na figura do empregado um ser humano portador de uma história pessoal e de direitos fundamentais mundialmente reconhecidos, dentre eles o direito à vida e à saúde física e mental, inclusive no ambiente de trabalho. Também não adotar métodos de gestão ou de organização do trabalho que favoreçam o surgimento de transtornos mentais, eliminando os riscos psicossociais. Importante criar um bom ambiente de trabalho, com espaço para técnicas de relaxamento, estimular atividades físicas e as relações interpessoais dos trabalhadores, tanto dentro quanto fora do ambiente laboral. Ainda se recomendaa adesão a campanhas contra o tabagismo, o alcoolismo e o consumo de drogas, buscando parcerias com o CVV e outras entidades ligadas ao “Setembro Amarelo” para a realização de palestras, dinâmicas de grupo e outras programações, inclusive esportivas. Além disso, podem ser contratadas empresas, hoje em fase de expansão, dedicadas a diagnosticar a sanidade mental do ambiente de trabalho e propor medidas para a eliminação dos riscos nessa área.
(*) Zeno Simm conta com importante histórico profissional e acadêmico.
Atualmente, atua como Advogado. Anteriormente, integrou a Magistratura junto ao Tribunal Regional do Trabalho da 9.ª Região (PR). Aposentou-se no cargo de Desembargador do Trabalho.
É Membro da Academia Brasileira de Direito da Seguridade Social (Cadeira n.º 30), Especialista em Metodologia Científica voltada para o Ensino Jurídico (UniCuritiba) e em Estado Social e Globalização (Universidad de Castilla-La Mancha), Mestre (UniCuritiba) e Doutor em Direito (Universidad de Castilla-La Mancha).
Ainda, ex-Professor em diversas Instituições de Ensino Superior nas cadeiras de Direito Previdenciário, Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho. Mas Palestrante ativo em eventos jurídicos nacionais e internacionais nas áreas trabalhista e previdenciária, além de compor, como Membro, bancas examinadoras de monografias de pós-graduação.
Afora os artigos publicados em periódicos nas áreas do Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Direito da Seguridade Social, é autor dos livros:
- Você Conhece Previdência Social?
- Teoria Prática do Direito do Trabalho.
- Os Direitos Fundamentais e a Seguridade Social.
- Acosso Psíquico no Ambiente de Trabalho.
- Suicídio como Acidente do Trabalho e Direitos Fundamentais.
Finalmente, agregam-se a esse vasto currículo as distinções de Grande Oficial da Ordem Guaicurus do Mérito Judiciário do Trabalho e de Comendador da Ordem das Araucárias.