Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho - IPEATRA, emitiu no dia 8 de novembro nota técnica em decorrência do julgamento do Recurso Extraordinário n. 958.252 pelo Supremo Tribunal Federal.
Confira a nota na Íntegra:
"1. A Constituição Federal de 1988 previu, dentre os seus Fundamentos, a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho (art. 1º, incisos, III e IV, respectivamente). Aliada aos dispositivos constitucionais que preveem os direitos fundamentais, é possível afirmar que a dignidade da pessoa humana diz respeito à necessidade de o Estado assegurar a possibilidade de autodeterminação dos indivíduos. Trata-se da implementação jurídica do conceito kantiano de dignidade, o qual impede a instrumentalização do ser humano. Ainda, e em consonância, o valor social do trabalho foi previsto e consagrado pelo legislador constituinte como condição de existência da livre iniciativa. Isso porque, como é evidente, não existe livre iniciativa sem o trabalho humano digno e decente. Dessa maneira, houve clara, nítida e inquestionável opção ideológico-constitucional em estabelecer os limites do avanço do capital sobre o trabalho humano, o que impede a interposição de mão de obra (entenda-se: instrumentalização do ser humano) como forma de concretizar a livre iniciativa, especialmente se se tratar de terceirização de atividade-fim. A livre iniciativa apenas atende a sua função social se, sempre, observar os princípios edificantes da República Federativa do Brasil, os quais revelam as condições de existência dos próprios direitos fundamentais ínsitos ao Estado Social e Democrático de Direito.
2. Justamente por essa razão o legislador constitucional previu, no caput do art. 170, que a ordem econômica será fundada (entenda-se: terá como condição de existência) na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa. Mais uma vez, e como não poderia deixar de ser, o valor social do trabalho foi colocado à frente da livre iniciativa. Há, de forma mais cristalina, a adoção de opção ideológico-constitucional no sentido de assegurar a existência do trabalho digno e decente, hipótese que só existe num contexto em que o labor humano não seja instrumentalizado e efetivado por intermédio de pessoas interpostas. Não se pode olvidar, ademais, que a ordem econômica terá como objetivo primordial o asseguramento de uma existência digna aos cidadãos - conforme os ditames da justiça social, objetivo que é gravemente comprometido diante da precarização que invariavelmente acompanha a terceirização (seja ela relativa à atividade-meio ou fim).
3. Como se não bastasse, o mesmo art. 170 da Constituição Federal enumerou princípios segundos os quais a ordem econômica será construída e consubstanciada. Na iminência de julgamento do Recurso Extraordinário n. 958.252 pelo Supremo Tribunal Federal, sobreleva-se a importância dos princípios da função social da propriedade, da redução das desigualdades sociais e regionais e da busca pelo pleno emprego (incisos III, VII e VIII, respectivamente). Isso porque, como é público, notório e inquestionável, a terceirização (especialmente de atividade-fim) tem revelado a face mais perversa da exploração do trabalho humano, comprovadamente acarretando o aprofundamento das desigualdades sociais e a precarização das relações de trabalho, vilipendiando direitos trabalhistas míninos duramente conquistados ao longo dos últimos dois séculos. Os trabalhadores terceirizados são sub-remunerados e se encontram à margem do Direito do Trabalho, tal como revelam dados objetivos do DIEESE. Deve-se observar que o legislador constituinte acrescentou o termo 'pleno' ao vocábulo 'emprego' (inc. VIII do art. 170 da Constituição Federal). A análise do princípio da busca pelo pleno emprego deve ser qualitativa, e não quantitativa. Essa é a única forma de adequar a ordem econômica aos Fundamentos da República Federativa do Brasil, especialmente a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho (incisos III e IV, respectivamente, do art. 1º da Constituição Federal). Nesses termos, o argumento no sentido de que a liberação da terceirização da atividade-fim possibilita a criação de mais empregos é falacioso e inconstitucional, pois os postos de trabalho eventualmente criados são precários e contrários à necessidade de busca pelo emprego decente, digno e socialmente valorizado. Trata-se, de fato, de argumento cujo objetivo é aproveitar o cenário de crise econômica para, mais uma vez na história recente do país, buscar retrocessos sociais cujo resultado será tão somente a elevação da margem de lucro de parcela que não corresponde a 5% da população brasileira.
4. É sempre bom lembrar que a Constituição da República de 1988 está em consonância com os tratados internacionais e, especialmente, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo XXIII) ao garantir que todo ser humano tem direito ao trabalho com respeito à sua dignidade.
5. Ressalte-se que inexiste estudo científico demonstrando que a liberação da terceirização leve à criação de novos empregos. Pelo contrário, a precarização dos postos de trabalho terceirizados é comprovada não apenas pela aferição objetiva das remunerações mais baixas e da acentuação das desigualdades sociais e regionais. É comprovada também pelo elevado índice (objetivamente aferido pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho) de acidentes típicos de trabalho e de doenças ocupacionais que acometem os trabalhadores terceirizados. O legislador constituinte previu, dentre os direitos fundamentais dos trabalhadores rurais e urbanos, a incessante busca pela redução dos riscos inerentes ao trabalho, por intermédio de normas de saúde, higiene e segurança (inc. XXII do art. 7º da Constituição Federal). A prática das relações sociais tem demonstrado, de forma bastante cristalina, que as empresas prestadoras de serviços não possuem condições mínimas para o cumprimento das normas relativas à necessidade de implementação de ambiente de trabalho seguro e digno. Isso ocorre por dois motivos principais: a) ou as empresas prestadoras de serviços terceirizados existem apenas formalmente ou b) quando de fato existem, não possuem condições financeiras para honrar seus compromissos (sejam eles fiscais ou trabalhistas). Desta forma, permitir a terceirização de atividade-fim apenas reforçará o já nefasto contexto de sujeição de trabalhadores a acidentes típicos e a doenças ocupacionais, contribuindo para a vergonhosa manutenção do Brasil no topo da lista dos países nos quais há mais mortes e adoecimento no trabalho.
6. Por derradeiro, o legislador constituinte previu, no caput do art. 7º da Constituição Federal, a incansável busca pela melhoria da condição social dos trabalhadores. Não se pode admitir, sob nenhum falso pretexto ou falácia argumentativa, que a liberação da terceirização da atividade-fim seja compatível com a melhoria da condição social dos trabalhadores. A prática das relações sociais demonstra resultado diametralmente oposto, qual seja: precarização das condições de trabalho e desrespeito a direitos trabalhistas mínimos. Isso se se considerar as já excepcionais hipóteses legais de terceirização existentes no Brasil (trabalho temporário, serviços de vigilância e de limpeza). A busca pela melhoria da condição social dos trabalhadores revela, de forma inquestionável, a impossibilidade de adoção de medidas (sejam elas judiciais, legislativas ou administrativas) cujo resultado revele retrocesso social. A liberação da terceirização da atividade-fim, como é evidente, é forma de efetivar retrocesso social lamentável e prejudicial à sociedade, cujas consequências serão irreversíveis.
7. A terceirização deve ser regulamentada pelo Congresso Nacional, Poder competente para tanto, porém com sua admissão apenas aos casos de efetivo ganho de produtividade e eficiência no processo produtivo, garantindo-se, sempre, a estrita observância dos direitos fundamentais dos trabalhadores.
8. Assim, considerando a precípua função que o legislador constituinte atribuiu ao Supremo Tribunal Federal de zelar pela observância da Constituição Federal, especialmente de seus Fundamentos e Princípios edificantes; considerando a iminência de julgamento do Recurso Extraordinário n. 958.252, vem o IPEATRA reafirmar sua posição contrária à possibilidade de terceirização de quaisquer atividades, especialmente daquela relativa à atividade-fim, e, justamente por isso, clamar à Suprema Corte que, no exercício de sua missão constitucional, mantenha incólume os artigos 1º, incisos III e IV, 7º, caput e inciso XXII, 170, caput e incisos III, VII e VIII, todas da Constituição Federal - como forma de impedir retrocesso social e assegurar existência digna aos trabalhadores brasileiros."
São Paulo, 08 de novembro de 2016.
JOÃO BATISTA MARTINS CÉSAR RAIMUNDO SIMÃO DE MELO
Presidente Vice-Presidente