Escuto atento aos debates a respeito da extinção (ou não) da justiça do trabalho. Argumentos econômicos são traçados e envolvem valores gastos com a estrutura e sua incompatibilidade com os distribuídos à população trabalhadora que reclama, justificando seu fim. Outros dizem respeito à garantia e salvaguarda da Constituição, bem como os interesses do empregador que respeita a lei e não se dobra à guerra hoje nominada dumping social.
Não vou debater, neste breve ensaio, estes dois argumentos. Isso porque para mim eles são importantes, mas já foram por demais versados. Creio, também, devo dar importância a outro debate que envolve a extinção ou não da justiça do trabalho, mas não a coloca como elemento central.
Numa sociedade democrática, fruto do debate e da vitória do melhor argumento e em que, em tese, os “debatentes” o fazem em igualdade de condições, o conflito é necessário. É necessário para reforçar entendimentos, aproximar versões e visões da vida e catalisar a atuação de quem faz a lei em prol do bem comum.
Pois bem, a extinção da justiça do trabalho não eliminaria os conflitos entre capital e trabalho. E isso ocorre por uma razão bem simples: não há capitalismo sem o conflito capital e trabalho. O contrato de emprego é a ossatura do sistema capitalista centrado na propriedade dos bens e dos meios de produção nas mãos de pouquíssimos e no trabalho assalariado para a maior parte da população. E o movimento, dentro do modo de produção presente, se faz, necessariamente, com a troca entre os poucos proprietários e a massa da população obreira.
Presumir ou pior, concluir que esta troca não gerará conflito é, para ser bondoso, ingenuidade. Não há como mexer a máquina capitalista sem, necessariamente, tornar em movimento a relação capital e trabalho. E este movimento, e justamente em razão dele, cria conflitos. E os conflitos são dos mais variados, desde assédios, não pagamento de horas extraordinárias, não-concessão de equipamentos de proteção, pagamento de salário extra folha, até justas causas cometidas pelo empregado em razão de desídia ou abandono de emprego.
É por isso que a justiça do trabalho é necessária. Quem irá solucionar estas contendas? Se os serviços forem transferidos ou à justiça estadual ou à federal, quem movimentará os processos? Quem os julgará? As respetivas estruturas não tem nem pessoal e nem dinheiro para gerir os processos já existentes e novos, devendo contar com o corpo funcional da justiça do trabalho. E isso gerará custo. Custo quem sabe mais alto do que o que se tem hoje.
Sei que os antes nominados ingênuos não o são. E para chegar a esta conclusão basta lê-los nem que de vez em quando. O que percebo é que o que se quer é eliminar o conflito e o debate da diferença. Criar uma nova forma de capitalismo sem o embate entre capital e trabalho. Ou seja, um capitalismo domesticado.
O problema deste capitalismo domesticado, sem luta capital e trabalho, é que gera um outro problema. Não há democracia sem conflito. Não há democracia sem que o operário possa reivindicar seus direitos e lutar por melhores condições sociais e econômicas. Defender o fim da justiça do trabalho pode ser o mesmo que domesticar o capitalismo, mas pode ser igual a matar a democracia e o direito à luta. Não quero, honestamente, pensar que o que os não-ingênuos propõem é isso, embora me pareça bem plausível, em razão justamente desta não-ingenuidade.
O fim da justiça do trabalho, portanto, pode ser apenas o primeiro passo para o fim do debate e da luta. Para o fim da democracia e do discurso fundamentado. Pode ser o primeiro passo à mordaça e a exclusão do diferente, dos novos bárbaros. Os riscos com uma prática como esta podem ser severos em especial às gerações que vem. Evitemos matar a democracia. Entendamos as práticas de governo e o que, simbolicamente, possam elas nos mostrar. Devemos sempre defender a luta e o debate, o argumento e o contra-argumento. Defendamos sempre o outro. Assim, defenderemos a nós próprios. Defendamos a justiça do trabalho como forma de defesa da democracia!
Defesa da justiça do trabalho e defesa da democracia.
Por Rafael da Silva Marques - Juiz do trabalho e membro da Associação Juízes para a Democracia