Confira artigo assinado pelos Presidentes da ANAMATRA, Guilherme Feliciano, e da AMATRA 16 (MA), Saulo Fontes, publicado no dia 12 de janeiro no site Consultor Jurídico, sob o título "Criminalizar ofensa às prerrogativas é banalizar direito penal". Os dirigentes abordam questões envolvendo as discussões sobre o PL 8.347/2017, em debate no Congresso Nacional, que criminalizará a denominada “violação das prerrogativas da advocacia”. Clique aqui e confira ou acesse a íntegra abaixo.
_____________________________________
Criminalizar ofensa às prerrogativas é banalizar direito penal
Por Guilherme Guimarães Feliciano* e Saulo Tarcísio Carvalho Fontes**
Em seu célebre Strafrecht Allgemeiner Teil (Band I), Claus Roxin já pontuara que, nos Estados Democráticos de Direito, nem tudo pode ser criminalizado ao inteiro alvedrio do legislador. Bem ao contrário, o legislador ordinário deve se ater ao programa penal da Constituição que o subordina; e, de um modo geral, as constituições democráticas não admitem (a) cominações penais arbitrárias; (b) tipificações penais com finalidades puramente ideológicas; (c) tipificações penais de meras imoralidades; e (d) preceitos penais que criam ou asseguram desigualdade entre seres humanos.
Com relação àquela primeira restrição ─ a das cominações penais arbitrárias ─, Roxin exemplifica a hipótese com passagem lendária extraída da tradição germânica. Conta-se que certo governador austríaco designado para as terras suíças, de prenome Greßer, incomodou-se com o fato de que os cidadãos suíços não tinham por ele grande estima, nem lhe prestavam reverências (até por ser um estrangeiro que representava a dominação austríaca). Para mudar esse estado de coisas ─ ou ao menos para agredir quem supostamente o agredia ─, Greßer determinou que se colocasse em exibição pública, na praça central da cidade-sede, o seu próprio chapéu, representativo da sua pessoa; e, por meio de ato normativo geral, determinou que todos os cidadãos reverenciassem o chapéu, quando passassem diante dele, sob pena de responsabilização criminal.
Eis um exemplo feliz dos usos mais infelizes do Direito Penal.
Em escala mais perigosa, algo similar talvez se passe no Brasil, em pleno século XXI. Está em vias de ser votado, no plenário da Câmara dos Deputados Federais, o PL 8.347/2017, que ─ após longo esforço institucional da Ordem dos Advogados do Brasil ─ criminalizará, a assim denominada “violação das prerrogativas da advocacia”. É que a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou a referida criminalização, em 5 de dezembro de 2017, a partir do relatório elaborado pelo deputado Wadih Damous (PT-RJ), ex-presidente da seccional fluminense da OAB. O projeto seguirá para discussão e deliberação no plenário da Casa. Se não houver alterações de texto, sequer retornará ao Senado da República.
E o que isto significa, especialmente para o dia a dia da aplicação do Direito?
Com a aprovação do PL 8.347/2017, uma vez sancionado pelo presidente da República, a Lei 8.906/1998 (Estatuto da Advocacia) passará a prever um novo crime: o crime de violação (dolosa) de direitos ou prerrogativas de advogado, passível de cometimento, em tese, por qualquer cidadão, seja ou não funcionário público.
Pois bem. Quatro ordens de argumentos convencem-nos da inconveniência e, mais, da manifesta inconstitucionalidade da referida criminalização. Vejamos.
Há, a uma, o aspecto político-criminal da novidade.
Os nossos tempos são ─ ou ao menos deveriam ser ─ tempos de Direito Penal mínimo, notadamente porque o sistema penal contemporâneo revelou-se gravemente ineficaz em relação a seus escopos primeiros (tutela de bens jurídicos de máxima relevância e pacificação social). Disse-o com muita felicidade, aliás, o grande Alessandro Baratta, com o traço humanista que lhe era peculiar. Di-lo também, com elegância ímpar, o grande Luigi Ferrajoli, pai do garantismo penal. Nessa apropriada linha, a política de criminalização generalizada de condutas é corretamente repudiada pelas ciências criminais contemporâneas. Se as normas de direito “não-penal” bem resolvem o contexto de conflito, com amparo civil, processual e/ou administrativo, não há porque o Estado adotar medidas extremas, tornando “criminosa” toda violação de direito, ainda que se apresente (a isso se resume, aliás, o princípio da “ultima ratio”, de regência seminal no Direito Penal). Os tipos penais devem ser reservados para as condutas ilícitas mais graves do meio social, por exemplo, aquelas que trazem em si afetações qualificadas aos bens jurídicos de máxima relevância jurídico-constitucional. Essa condição básica não se apresenta no proposto artigo 43-A, que se aduziria à Lei 8.906/1998. Por ele, catalogar-se-á como crime a conduta de “violar direito ou prerrogativa do advogado, relacionada nos incisos I, II, III, IV, V, XIII, XV, XVI ou XXI do artigo 7º”.
Por outro lado, e a duas, é de se indagar: o leitor compreendeu bem quais são precisamente as condutas que já não poderá realizar, sob a punição de responder por pena de detenção de um a quatro anos, caso seja sancionada a referida lei? Estamos certo de que não. E este é outro grande problema. A nova norma penal será uma norma penal em branco, a exigir do intérprete uma análise combinada do próprio novel artigo 43-A e dos vários incisos do artigo 7º da Lei 8.906/1998 (Estatuto da Advocacia), para que se possa concluir quais condutas estão vedadas. Perde-se a chamada taxatividade, própria da legalidade estrita que rege o Direito Penal. Ou, seguindo a tradição liberal oitocentista: a lei penal deve ser “lex certa”, “lex stricta”, “lex praevia” e “lex scripta”. No entanto, os dois primeiros predicamentos não se atendem bem na proposta legislativa prestes a ser aprovada na Câmara dos Deputados. Com efeito, são recorrentes os casos em que juízes, membros do Ministério Público, autoridades policiais e administrativas e os próprios parlamentares ─ especialmente nas comissões de inquérito ─ interpretam de modos diversos, a cada situação, a prerrogativa ou o direito invocado pelo advogado, notadamente nos pontos mais obscuros (por exemplo, “além dos cancelos” ─ mesmo dentro das secretarias e cartórios? ─, “em qualquer assembleia ou reunião” ─ inclusive as de acesso restrito, como as familiares ou religiosas? ─, “independentemente de horário previamente marcado” ─ mesmo que o juiz esteja em plena inquirição de testemunha? ─, “processos judiciais ou administrativos de qualquer natureza” ─ inclusive em feitos preparatórios de termos de ajustamento de conduta ou de acordos de delação premiada? ─, “assistir a seus clientes” ─ qualquer tipo de “assistência”, inclusive a verbal e a material? ─ etc.). Pois bem: uma vez aprovado o PL 8.347/2017, essa “interpretação”, inerente à atividade profissional desses agentes públicos, passará a configurar sério risco de que aquele juiz, membro do Ministério Público, autoridade policial, autoridade administrativa ou parlamentar respondam por crime de violação de prerrogativas de advogado, desde que, na concepção do juízo ou tribunal a que for distribuída a ação penal ─ e a própria OAB poderá fazê-lo, por seu Conselho Federal ou Seccional, nos termos do novel artigo 43-A, §4º ─, a intelecção jurídica dada para o texto não for a “correta”. Noutras palavras, crime de hermenêutica.
Quanto à própria imunidade advocatícia, aliás, há fundada doutrina entendendo que a inviolabilidade do artigo 133 da CRFB e do artigo 7º, §2º, da Lei 8.906/94 não alcança os notórios excessos, absolutamente desnecessários para a defesa profissional dos interesses do cliente (como quando, p.ex., assacam-se contra o juiz ou o promotor palavras de baixo calão, em audiência ou em petições). Veja-se, a propósito, o sempre lembrado escólio de Bitencourt ─ que hoje pertence aos próprios quadros da OAB ─ ou, ainda, o próprio teor da ADI 1127-8, em cujo bojo se exarou a medida liminar que suspendeu a eficácia do preceito do artigo 7º, §2º, quanto à figura do desacato.
Para mais, a própria remissão aos incisos do artigo 7º do Estatuto da Advocacia é “per se” infeliz; tipos penais com essa característica sempre a crítica da doutrina, tanto entre os autores clássicos (J. Frederico Marques à frente), como, mais recentemente, entre os garantistas (L. Ferrajoli à frente). Os incisos do artigo 7º possuem preceitos tão genéricos quanto “exercer, com liberdade, a profissão em todo o território nacional” (I), ou tão anódinos como “permanecer sentado ou em pé e retirar-se de quaisquer locais indicados no inciso anterior” (inciso VII, reportando-se às salas de sessões, audiências, cartórios, etc. ─ esse retirado, em boa hora, da redação do projeto).
Outrossim, e a três, a própria legislação penal em vigor já trata adequadamente das hipóteses que o PL 8.347/2017 pretende profligar. Assim, por exemplo, para o caso de o parlamentar, o magistrado, o membro do Ministério Público ou o policial ordenar (em) ou executar (em) medida privativa de liberdade em desconformidade com a lei ou com abuso de poder, terá praticando, em tese, o crime de exercício arbitrário ou abuso de poder, sujeitando-se às penas do artigo 350, caput, do Código Penal (detenção, de um mês a um ano). Vale para todas as ordens de prisão ilegais dimanadas e/ou executadas contra advogados ou qualquer do povo, sem distinções ou privilégios quaisquer, tanto menos derivados da condição profissional de “advogado”. Quanto às buscas e apreensões em escritórios de advocacia, já há, do mesmo modo, tutela penal adequada: a conduta de efetuar, com abuso de poder, qualquer diligência (inclusive as judiciais) já está prevista na lei penal brasileira, como tipo penal equiparado ao do crime de exercício arbitrário ou abuso de poder (artigo 350, par. único, IV, do CP), com as mesmas penas a ele cominadas.E não é só. Se a autoridade judiciária, ministerial ou policial for ainda além, praticando violência em detrimento de advogado ou qualquer do povo, responderá pelo crime de violência arbitrária (“no exercício da função ou a pretexto de exercê-la”), nos precisos termos do artigo 322 do CP, com penas que vão de seis meses a três anos de detenção, também sem prejuízo da pena correspondente à violência.
Ainda que assim não fosse, segue em vigor a Lei 4.898/1965, que “regula o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa civil e penal, nos casos de abuso de autoridade”. Lê-se ali, entre outras coisas, que são condutas criminosas, punidas com detenção de dez dias a seis meses, as seguintes (atente-se para os destaques):
“Artigo 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:
a) à liberdade de locomoção;
b) à inviolabilidade do domicílio;
c) ao sigilo da correspondência;
(...)
i) à incolumidade física do indivíduo;
j) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional”. (incluído pela Lei 6.657,de 5.6.79)
“Artigo 4º. Constitui também abuso de autoridade:
a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder;
(..)
h) o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal;
Aí estão distribuídas praticamente todas as condutas contra as quais se insurge a Ordem dos Advogados do Brasil ao patrocinar a aprovação do PL 8.347/2017. Ressalte-se, em especial, a alínea “j” do artigo 3º, que foi inserida em 1979 por gestões da própria OAB, servindo justamente à prevenção e repressão das condutas de autoridades que violam concretamente os direitos e as garantias legais profissionais que, no caso da advocacia, dimanam hoje da Lei 8.906/94, “in totum” (e não apenas de seu artigo 7º). Mesmo essa previsão, pela sua desconcertante abertura, já seria de duvidosa constitucionalidade (rectius: de duvidosa recepção constitucional), pelas razões acima articuladas; mas, para o bem ou para o mal, a norma já existe e tecnicamente está em vigor, sem qualquer declaração judicial de inconstitucionalidade ou de não-recepção que seja vinculante “erga omnes”. Logo, a “nova” norma ― que, no fundo, vai simplesmente repositivar toda essa matéria, de modo ainda mais genérico e pantanoso, nos lindes da palmar inconstitucionalidade ― não tem qualquer razão de ser, social ou politicamente. Repise-se: a tutela penal das “prerrogativas profissionais” já existe (e para todos, como deve ser; não apenas para advogados); e, se peca, já peca pelo excesso.
A quatro, e por derradeiro, é certo que, a rigor e em tese, os esforços legislativos de contenção dos excessos não vingaram. Mesmo com a redação mais “enxuta” que veio do Senado da República (pelo voto da senadora Simone Tebet, em tudo ratificado pelo relator do projeto na CCJ da Câmara, o deputado Wadih Damous), ainda poderiam configurar o novo crime condutas tão isentas e corriqueiras como o bloqueio temporário de passagem de um advogado em blitz policial de rotina (porque, afinal, estará sendo impedido de exercer “com liberdade” a sua profissão, se por exemplo estiver se dirigindo a uma audiência); ou a indisponibilidade de autos físicos de processo, por estarem conclusos com o juiz, muitas vezes fora das dependências da unidade judiciária (por violação do inciso XIII do artigo 7º, do Estatuto); ou se tardar ou falhar a remessa de um simples ofício à seccional local da OAB (por violação da parte final do inciso IV do artigo 7º do Estatuto); ou, ainda, se certo advogado for recolhido preso em dependências que não tenham sido “reconhecidas” como condignas por nenhuma representação da OAB (por violação do inciso V do art. 7º do Estatuto). Iniludível, afinal, que a imensidão da abrangência do tipo penal segue inadequada; e deverá gerar, “per se”, intensa insegurança jurídica, além da inibição de atuação dos agentes do Estado, ainda que dentro do espaço legal e constitucional de sua atuação. Disso resulta, em variegadas hipóteses que se podem conjecturar, possíveis cerceamentos à própria liberdade de condução do processo que é assegurada aos juízes, a teor dos artigos 139 e 360 do CPC/2015, ou aos próprios parlamentares, nos ensejos do artigo 58, §3º, da CRFB.
O que afinal se pretende demonstrar com tal casuística, por ora hipotética, é que o tipo penal prestes a ser sufragado pelo Parlamento segue genérico e, por isso, amiúde impraticável. Para mais, protegerá inexplicavelmente os direitos de uma dada profissão liberal, que passa a merecer tratamento jurídico distinto e dispor de proteção penal especial, em detrimento de todas as outras similares (médicos, contadores, engenheiros, terapeutas etc.).
A bem de equacionar tais equívocos, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA) propôs alterações ao texto em curso, sugerindo que, na cabeça do novel artigo 43-A, seja inserida a locução “com o fim de prejudicar o livre exercício da advocacia” (a configurar o chamado dolo específico, reduzindo o alcance do tipo subjetivo). Sugeriu, da mesma maneira, que se inclua, na sequência do artigo, parágrafo a prever que “[a] aplicação do presente artigo não prejudicará as garantias e prerrogativas da Magistratura e do Ministério Público, nem seus poderes processuais regularmente exercidos”. Tal parágrafo prestar-se-ia sobretudo a aclarar, na espécie, o universo axiológico de possibilidades; e, por conseguinte, preveniria quadros de excessiva litigiosidade que o novo tipo penal deve oportunizar (notadamente, diga-se bem, em ações trabalhistas, ante a peculiar proeminência da oralidade e a concentração dos atos processuais em audiência). No entanto, tais propostas não obtiveram o aval prévio do Conselho Federal da OAB e, por conseguinte, tanto foram recusadas pela senadora Simone Tebet como pelo deputado Wadih Damous, relatores em suas respectivas Casas. Bom seria, para a segurança jurídica vindoura e para a serenidade das mesas de audiência, que, ao menos no plenário da Câmara, as alterações fossem encampadas.
Descartes disse, no século XVII, que “a primeira máxima de todo cidadão deve ser a de obedecer as leis e os costumes de seu país, e, em todas as demais coisas, governar-se segundo as opiniões mais moderadas e mais distantes do excesso” (g.n.). Eis uma sábia lição, em especial para os cultores das leis, e fundamentalmente para os construtores da lei. Para que ela própria, a lei, afaste-se do excesso. Nas veredas do Direito Penal, isso não é menos que vital.
Oxalá o Parlamento brasileiro o perceba a tempo.
*Guilherme Guimarães Feliciano é Juiz do Trabalho do TRT 15ª Região. Presidente da ANAMATRA (2017-2019). Doutor em Direito Penal e Livre-Docente em Direito do Trabalho. Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da USP.
**Saulo Tarcísio Carvalho Fontes é Juiz do Trabalho Titular da 2ª Vara do Trabalho de São Luís. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutor em Direito pelo UNICEUB. Presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 16ª Região (AMATRA XVI – Maranhão).
*Notícia originalmente publicada no site da ANAMATRA.